domingo, novembro 16, 2008

Agenda

Segunda-feira
Uma cereja podre com uma pobre alma e um triste fim, ao chão da rua suja de água de peixe do fim da feira.

Terça-feira
Cães passaram, cheiraram, pessoas chutaram... Vermes nasceram. Um passarinho veio e fez cocô em cima, o que alimentou ainda mais os vermes, ajudando a acabar com a cereja.

Quarta-feira
O caroço estava à mostra. A pele aparecia em uma das metades, já meio derretida, já meio irreconhecível, já não mais cereja, já não mais vermelha. Cor de apodrecida com poeira de rua.
Choveu.

Quinta-feira
Os lixeiros varream o caroço, que foi a única coisa que sobrou.

Sexta-feira
Não mais existiu.

Sábado
Não mais existiu.

Domingo
Não mais existiu.
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Somente o necessário

Fale com ela somente o necessário. Ela está ali, naquele canto. Aquela sombra encolhida: é ela. Aproxime-se lentamente, mas vá avisando da porta que está indo vê-la. Sem cuidado, ela some. Ela está ali, precisa ir logo; vá rápido, mas sem pressa. Esqueça seu nome, esqueça do seu tamanho, da sua cor, esqueça as suas lembranças e vá apenas falar o necessário. Sabe qual é uma boa idéia? Tentar pegá-la no colo, no seu colo quente. Tente abraçá-la. Ela pode tentar fugir, ou vai ficar com medo da sua atitude. Talvez ela nunca tenha sido abraçada. Mas não espere reações, quem sabe ela já não está morta? Espero que não, que ainda existam chances. Tente reverter a sua situação, mas não tente se explicar nem peça desculpas. Seja sincero. Perceba que sem ela você não seria nada e, no entanto, ela está naquele quarto escuro, trancafiada, enquanto você sai pelo mundo e brilha. Enquanto ela se encolhe e treme, calando o próprio desespero, você usa sua voz para dar risadas e agradecer elogios. Perceba a diferença entre vocês. No entanto, sem ela, você não seria nada. Perceba quem é você agora. Nada. Nada. Nada para sempre quatro vezes ao quadrado, que somados, nem chegam a dar um inteiro. Viu quantos caralhos? Ela com certeza. Todas as gotas de esperma que fizeram chover lágrimas em cima das pessoas. E as lágrimas eram vermelhas, é claro. Perceba. Tente sentir o que ela sente. A vergonha, o medo, o ódio. Ela treme e você também. Agora você é ela. Escurraçado do próprio mundo, tente senti-se naquela pele, naquele chão frio, naquele canto gelado, naquele quarto escuro e com uma única janela, naquele chão empoeirado, naquele quarto sem móveis, naquela vida igual a sempre. Milênios de idade. Tente senti-la. Você agora é ela.

sábado, novembro 15, 2008

Vrischika - o escorpião

Força da consciência. Consciência forte. Tanto faz. No entanto, perceba: não significam a mesma coisa. São dois radicais; um significa força e o outro, consciência. Se a tradução for "força da consciência", indica o tipo de poder e de força que carrega o escorpião; não é força bruta, não é física. É algum tipo de força interna. Mas se for "consciência forte", indica também o tipo de vida interna que esse signo leva. Signo fixo, tende a estagnar nas suas emoções, não se mexe, não muda para poder examinar e exaurir cada questão, cada segundo da sua vida. Disseca a vida até o enxofre, resseca até o carvão. Transforma. A missão cármica para evoluir: abrir mão das memórias emocionais, dessa e de outras vidas. A astróloga védica disse isso, e disse que as marcas trazidas por escorpião são como cicatrizes na alma. As marcas são claras, as memórias também. Traições, mortes e muitas perdas que ainda ecoam nessa vida. Pois é, eu sou Vrischika. Agora, tudo se explica. A minha relação com a vida, a presença sempre forte de escorpião por trás dos panos... Agora tenho em mente: sou eu. Eu trazia isso comigo, agora vesti a armadura com o ferrão. O poder é meu, a insegurança também. Quando tudo fica difícil, abro mão. É assim que escorpião se move, ele abandona. Desiste. É a única ação possível dentro d'água. Você não tenta se segurar a nada, você deixa correr. É isso que preciso aprender. Deixar a água levar o que eu não consigo segurar, e não ficar com essas coisas marcadas dentro de mim para sempre.

Se expor ou não se expor, eis a questão.

Subi a montanha, estava nublado. Porém, fazia calor. Sem proteção e sem aviso, levei na bolsa todas as minhas questões, e fui arrastando meu peso redondo de ferro até lá em cima. Quando cheguei lá, o tempo abriu, e eu olhei o sol de frente. Queimei a cara. Peguei uma pedra e quebrei a corrente. Cuspi as questões no chão. Os gaviões ficaram por perto. Os urubus não ousaram. Esmaguei alguns poucos insetos, aqueles mais intrusos. Conversei com a minha cara metade, com a minha metade sem cara, com o meu choro. Abracei o tronco retorcido de uma árvore pequena, que tinha umas coisas esculpidas nele. Fiz xixi no matinho. Fiz o eco repetir aquilo que eu não queria dizer, mas precisava escutar para que virasse verdade. Pois é, você morreu. Mais um passado na minha vida. Vários "vocês" que viraram história foram deixados lá em cima daquele morro. Eu morro também. Mas eu não estava sozinha. No alto da montanha, podia observar a cidade lá embaixo, tão caótica, tão barulhenta, tão mal construída e tão feia, como eu, naquele momento. Meu cabelo ressecado e desgrenhado, a boca seca, o interior tumultuado, os pássaros cantando... O corpo sujo de terra e a cara queimada. Porque eu não importava, porque a vida daqueles pássaros continuava como que em qualquer dia, e eu ali, o diferente, um invasor tão pequeno que não importava. Tentei imitar o som dos bem-te-vi. Acabei virando um macaco. Eu virei um macaco. Ficam todas as marcas.
Agora, estou trocando de pele.

Meus dias de fracasso

Fracasso. Abraçar o Fracasso. Digo para ele: "agora, sou sua amiga. pode vir comigo". E vamos, de mãos dadas; um tropeço aqui, um empurrãozinho ali. Discutimos. Eu quero vencer. Mas ele me derruba. Eu quero subir, ele impede. Eu quero esbanjar, mas ele tira as oportunidades. Viramos amantes. Eu quero sair com meus amigos, mas meus amigos não me procuram. Todos os telefones estão fora de área. Apenas o Fracasso está disponível, e ele atende. Ele sempre vem quando eu não chamo. Mas sempre sei quando ele está para chegar. Sempre há chances de que ele venha, quando eu tenho expectativas. Eu espero. E, no fim, ele aparece. Sempre perto da Frustração, eles são muito amigos. Fico com ciúmes. Queria o Fracasso só para mim. Eles sugeriram um ménage. Fizemos. Eu, a Frustração e o Fracasso. Combinação muito atraente. Porém, fadada a não dar certo. Ainda bem. Ainda bem que minhas amizades são cíclicas. Assim, posso saber que ali na frente encontrarei o Sucesso de mãos dadas com a Fortuna, e eles também vão querer ser meus amantes. Deixarei... Quem sou eu para recusar sexo com a vida?

terça-feira, novembro 04, 2008

Quadro negro de carne

Risca-se com a gilete, abrindo cortes dos quais se orgulha, escreve frases na própria pele que possam revelar o seu interior. Deixa sair a verdade da vida, que é o sangue, que faz dos desenhos esculpidos ensinamentos para quem quiser ver e aprender. Esculturas líquidas. Tudo o que é escrito no quadro negro de carne é escrito com sangue e, portanto, é escrito com verdade. A crueldade com a própria pele é sentida como um carinho na própria alma; a dor ameniza o tumulto e a raiva, e as mensagens são generosidades sem tamanho aos outros vivos. Basta ter olhos para apreciar não a forma das obras, mas a alma do artista. É preciso ser um bom observador para apreciar a complexidade das pessoas. É preciso ter a coragem de um leão para fazer do próprio corpo uma cartilha.

A extensão da mentira

É mentira que a mentira tem pernas curtas. As mentiras têm pernas extensas, e correm quilômetros. Todos os filmes que começam com uma mentirinha de nada que vai virando uma bola de neve são baseados em fatos reais: a mentira embola. E vira uma verdade extensa. Um tapete de muitos e muitos metros, cheios de detalhes tecidos e de pessoas entremeadas. Quanto mais pessoas participam da mentira, maior ela fica. E a rede da mentira passa a ser infinita. Mas o ruim de mentir é que dá um friozinho na barriga... Medo de que descubram a verdade. E então, mentir vicia. E, assim, mentir vira uma aventura, vivida por quem está fazendo algo que talvez não devesse, e que definitivamente não quer contar. Vira uma travessura, uma saborosa irresponsabilidade para um dia atípico. Essa é a parte um da mentira.
A parte dois é que "mentir deixa a alma preta", como dizia o meu pai, e então é impossível mentir impunemente...
O que eu estou chamando de mentira é o que você deveriam estar se perguntando. Não assumam tão rapidamente que já sabem, por causa do conceito de cada um sobre a mentira. Ou não pensem que eu seja uma pessoa compulsivamente mentirosa, porque isso seria fácil demais. A mentira é um construto, como qualquer outro, podemos chamar também de máscaras sociais.
E usá-las é um tanto quanto cansativo, dada a necessidade.
Estou cansada de mentir para o mundo. Ficar inventando desculpas que justifiquem minhas vontades fora de hora OU ter que responder a alguém que vem lhe cobrar uma posição.
Sou obrigada a inventar desculpas que contornem a situação sem entrar num conflito direto, quando talvez, eu devesse fazer exatamente isso. Olhar o bicho nos olhos e comê-lo vivo.
Atacar, latir. Arranhar o seu focinho.
Professoras universitárias me ligando para perguntar por que eu não fui fazer a prova? O proprietário do apartamento me colocando contra a parede pintada pra perguntar por que eu quero morar sozinha? O mundo cobra uma posição. E eu não defini a minha. Quer dizer, sei exatamente a minha posição, mas para que o mundo não entre em conflito direto comigo, esse mundo prático e institucional, fico desviando por outros caminhos.
Então vocês vêem como a mentira está profundamente arraigada dentro de nós, envolvendo nossos órgãos e vísceras. Puxar a linha da mentira e ir puxando, fazer sair pelas orelhas, pela boca ou até pelo umbigo... E vamos ver no que vai dar. Eu dou notícias. Quando eu parar de ficar pedindo desculpas por quem eu sou, ou inventando justificativas para os meus quereres. Eu dou notícias.