sexta-feira, maio 01, 2009

Abro mão

Abro mão da encarnação em que eu fui mulheres sem pudor, passeando nua pelos campos que ainda existiam, e dos vários amantes que tinha, homens e mulheres, abro mão de todos os dias que passamos juntos, dos passeios à cavalo, dos banhos aromáticos, dos quartos enfeitados de cetim, das luxúrias, dos carinhos. Abro mão do dia em que eu fui tão mais liberta, na mente e no corpo, e não tinha tantas preocupações e medos que me limitam tanto hoje em dia. Hoje em dia... Naquela época eu não tinha noção dessa expressão, então abro mão disso também. Abro mão das jóias, dos amores, das cortes, dos bailes, dos banquetes, das honras, dos panos, dos empregados, abro mão dos escravos, dos serviçais, dos 144 quartos, dos tapetes importados, dos cabelos longos... Abro mão das estações do ano bem definidas, do amor livre que eu sentia, de tudo o que era belo, abro mão da juventude, da saúde, da infâmia, do calor humano, da presença de outro corpo além do meu na cama... Abro mão dos suspiros, dos orgasmos, dos dias sem trabalho, da pele acetinada, de tudo feito com calma e com cuidado, abro mão de todas essas vidas. Abro mão das vidas brandas, quase sem dificuldades, nas quais minhas vontades eram feitas. Pronto. -- Olha o que eu fiz...

Abro mão - agora mais próximo de mim - do controle, da tentativa de manter qualquer relação, da tentativa de amar e ser amada, dos momentos de paz, dos de ansiedade também, qualquer segundo sem expectativa é um segundo divino, qualquer momento em que não pense em você ou no que está fazendo é voltar o foco para mim, então é divino por igual... Abro mão do futuro, das minhas vontades, dos meus planos, dos palcos, abro mão de cantar, abro mão dos meus dons, abro mão de ser reconhecida, abro a mão e seus dedos se desencontram dos meus, vão se esvaindo para uma terra distante, e vamos nos distanciando, você vai subindo para outras galáxias, eu fico aqui na Terra com o mundo e o submundo. Você vira ar, eu viro pó. Abro mão da morte, abro mão da vida após esta, da sobrevida, abro mão das noites, das luas Phobos e Daimos, abro mão dos anéis de Saturno, fico com os dedos de volta na minha mão, mão que estava contra a sua, quente, agora já não mais... Mão aberta.

Nenhum comentário: