quarta-feira, abril 16, 2008

Salma Victoria

Antes de acordar, era uma sensação de não pertencimento. Como se estivessem querendo tragá-la para um mundo ao qual não pertencia. Não podia ver quem queria, mas podia sentir o peso cinza e congelado. Se adormecia e sonhava que dormia ao lado de sua avó, e via o fantasma dela que ao mesmo tempo não a via, sabia estar dormindo ao lado de um cadáver. Ficou imóvel no sonho. Quis ir embora, mas não conseguiu acordar. Foi como se tivesse que se resignar com aquilo, relaxar, mesmo em um momento de pânico. Achou que estivessem exigindo demais dela, e desligou, voltou a dormir. Mesmo apavorada. Continuou a sonhar. Dessa vez, com uma casa de madeira muito velha. Tudo dentro dela estava em decomposição. Entrava na casa. Encontrava a vida em decomposição. E tinha contato com pessoas mortas que estavam vivas. Zumbis, o seu maior pesadelo, uma família solitária deles. Tinham até um gato. Uma gata; a gata dela que tinha morrido. Sem conseguir respirar, corria, corria o mais rápido que podia pelos caminhos de floresta que saíam da casa. Deixou a gata para trás, não podia fazer mais nada. Mas todos os lugares pareciam pertencer ao mesmo lugar e às mesmas pessoas, e ela não pertencia a nenhum deles. Via a casa do lado de fora, tentava acordar o seu companheiro, mas o sono dele era muito pesado. Tentava falar como ele, mas ele não escutava, mesmo que estivessem dormindo tão entrelaçados. Tinha acordado. Queria lembrar do que tinha visto dentro da casa, mas o pânico era maior. Via a casa, mas não conseguia entrar. Recusava-se a refazer os próprios passos, em pânico. Conseguiu acordar o companheiro, mas não conseguiu contar. Voltou a dormir e, no sonho, ele não acreditava nela. Então ela corria, e quando tentaram agarrar os seus pés, ela voava. Passou correndo por uma amiga de infância que da qual se lembrava numa condição financeira muito boa e que agora estava em uma muito ruim. Passara a vender coisas, oferecer roupas na feirinha. Voou por cima de uma cabine quando até mesmo a amiga querida tentou fazer com que ela ficasse naquele lugar. Na cabine as pessoas trocavam de roupa, no meio da praça, a mesma na qual a amiga era vendedora, experimentando roupas. Dali conseguia fugir. Foi para o andar de cima, no qual voltou a dormir. No sonho, uma enfermeira dizia... “É aqui que guardamos os nossos restos mortais. Você pode voltar às oito para buscar. Às oito.” E ela demorou-se a pronunciar esse “às oito”. Saiu correndo como quem fosse viajar. Já estava na rodoviária- aeroporto do lugar. Acordou o companheiro, contou tudo a ele, mas ele não acreditou. No sonho, eles subiam com uma aeromoça vestida de vermelho; agora, a roupa dela era branca e azul. Teve a certeza então de que tinham se infiltrado no seu sonho e sabiam que ela pretendia escapar. Quando chegaram à superfície de desembarque, a porta deles estava trancada com cadeado. Então ela não quis esperar, fugiu pela porta ao lado, enganando os seguranças. Deixou o companheiro gritando no sonho, “Salma, volte!”. Mas ela sabia que não se tratava de seu companheiro em si. Não podia acreditar em nenhuma imagem daquele mundo. Estava só. Todos os seguranças periféricos agora tinham se voltado para ela, tentavam capturá-la. Mas viu um grupo de jovens entrando num carro vermelho a esquerda e pensou que seria ótimo fazer uma viagem com eles. Segundos antes de fecharem as portas, jogou-se no banco de trás, por cima das pessoas mesmo e gritou com as vísceras: “Cooooooorre!!!!”. Conseguiram arrancar. Depois de dar sua primeira respiração profunda em local seguro, olhou para o lado e viu que Pedro estava dentro do carro: “Você está aqui!”. Sentiu-se tão protegida. Naquele mundo, tudo era possível. E não entendeu porque justamente ele faria com que ela se sentisse tão segura, mas era um ex-namorado do seu irmão, uma figura conhecida, em quem podia confiar. Acordou de um olhar fixo nos olhos dele, aliviada. Mas não conseguiu voltar a dormir. Tinha ganho um novo nome, Salma Victoria. E duvidava do companheiro que jazia ao seu lado; dormia.

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