sexta-feira, outubro 24, 2008

Sofia

O cabelo é vermelho e preto. Como filha do Diabo. Minha mãe inferniza minhas manhãs e sai. Por todos os dias da minha vida, essa foi nossa rotina. O forró que o porteiro canta me acorda. Ele liga o som às alturas. O canto é desafinado como uma sirene. As panelas e pias de todas as cozinhas do condomínio se ampliam até chegar na minha janela. O cachorro do vizinho chora um choro estridente. Ele não pára. As crianças gritam, chamam pela mãe, brigam, gritam mais alto, quebram tudo. A mãe só vem para gritar, brigar, por causa do comportamento das crianças. A vizinha da casa de trás também grita com os cachorros. Ela é um dos cachorros. Ela late. O marido dela é mudo. Ela late. O marido dela deve ser surdo. Todos os outros vizinhos não são; entreolham-se das janelas, em silêncio. Por que contribuir com mais barulho? Há sempre um martelo, uma serra, em algum lugar por perto, sempre uma bateção, sempre uma briga de família, sempre uma obra durante os dias. Ainda no sol do meio-dia, tudo fica mais difícil. Se ficar em casa é não ter sossego, então acostuma-se com a fluência dos pensamentos e a buzina dos carros, o freio dos ônibus, a falação constante e inconsciente. A televisão ligada junto com a panela de pressão. A Ana Maria Braga, aquele papagaio agudo, tudo vai na panela de pressão e na comida que vai alimentar aquela casa em poucas horas. Tudo isso me causa um desespero e agonia. O Jesus na cruz está preso na porta de casa; é uma casa cristã. Engraçado como as pessoas cristãs gostam de infernizar os outros. Sempre criando infernos pessoais, sempre pedindo a Deus, nas filas do metrô, do banco... Sempre contribuindo para as coisas infernais do mundo, sempre cuspindo suas interjeições e os seus beijos pros santos. Meditação, ioga... Blasfêmia! Razão para se fazer mais barulho. Antes houvesse apenas vazio.

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