A lua estava cortada pela metade, e o contato deles também. Ela chegou em casa da rua, suada e queria liberdade, então tirou o sutiã. Mas antes limpou a casa in-tei-ra pensando nele. Ouvindo Roxette. Pensou que, se estava fazendo um serviço de Maria, podia muito bem se dar ao luxo de ser brega. Cantou, varreu, varreu, olhou-se no espelho e fez da vassoura um microfone. Gostou que o cabo ficasse mais baixo que a sua boca e que ela precisasse afastar as pernas para dar altura; se achou bonita. Pensou em como era bom poder cantar "I can't live without your love..." porque, de fato, podia. E vivia muito bem até. Mas todos os dias pensava nele e sentia a sua falta, e como era triste essa realidade, e como na morte tinha ganhado a vida. Sentia que os dois ainda estavam ligados, que ela o continuava nutrindo em algum plano transparente e invisível, sentia que ele podia sentir e pensava... Que se tinha tanto amor assim por ele, estaria ele procurando por ela em várias outras mulheres? Estaria enviando de volta a energia dela, através de outras bocas, outras peles? Depois sorriu, tola, com uma quase certeza de que ele poderia procurar à vontade, pois ELA só tinha essa que estava aqui. Sorriu, como quem sentia que seria impossível essa tarefa, como se o destino dele fosse para sempre se lembrar e nunca alcançar. Sorriu porque o pensou muito tolo, e se perguntou se poderia perdoá-lo por ter preferido viver a falta e o vazio ao invés do amor. Que, no amor, ficariam muito confortáveis e felizes, mas, na falta e no vazio, ele ficaria mais completo do que tudo. E sozinho. E ela entendeu, mas não sabia se ia conseguir perdoar; no entanto, não conseguia odiá-lo. Sabia que ele amava a si mais do que tudo e que não havia espaço para uma outra pessoa em sua vida. "Narciso", pensou. O odiou por um segundo. Ele era, em muitos segundos, maldito. Mas depois logo esquecia as maldições todas; o amaria para sempre. Cantou mais. "Fading like a flower... Fading like a rose..." Sabia que ele estava em trânsito; como o som estava alto, não pôde escutar o telefone tocar. Sabia que ele poderia aparecer em sua porta a qualquer momento ou, ao menos, sonhava com isso. Imaginou se ele iria embora ou se daria meia volta ao chegar na porta e a encontrasse escutando Roxette. Achou-se novamente tola. Foda-se o fantasma dele, a possibilidade ínfima de que ele viesse encontrá-la e, se viesse e desse as costas, que fosse para os diabos. Que o diabo o carregasse. Que o levasse para as profundezas do inferno -- mas lá não, pois ela conhecia o inferno muito bem e se veriam sempre. Não queria vê-lo, mas em pensamento e em desejo o visitava sempre. Estavam sempre juntos. Inferno. Ela o conhecia muito bem. Mas, o telefone tocou e ela não escutou. Viu que havia uma chamada não atendida depois que tirou o sutiã e se deu sorvete de presente, por ter limpado a casa in-tei-ra. Tentou ligar de volta. Não sabia de onde era o número. "Talvez fosse ele", pensou. E pensou que, se ninguém atendia, era porque não era para se falarem. O engraçado é que, de fato, poderia ser ele do outro lado e que, se ele tivesse ligado e ninguém tivesse atendido, ele teria o mesmo pensamento. E assim tentavam sempre se encontrar, e estavam sempre ligados pelo desencontro, pela lembrança, pela falta, pelo desejo e pela filosofia.
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