segunda-feira, abril 30, 2007

Calçadas

O meu ponto de vista sobre as calçadas é sempre vertical, como é também o ponto de vista de todas as pessoas que passeiam. Privilegiado é aquele que, com muita coragem ou nenhuma outra opção, adquire um ponto de vista horizontal sobre o local que serve como plataforma impulsionadora dos pés. Portanto, a minha visão sobre calçadas é uma experiência matemática e cartesiana, valendo noventa graus. Se nos deitássemos aonde ficamos em pé, todo nosso mundo seria visto de uma forma diferente. Olharíamos solas, tipos e tamanhos de sapatos ao invés de rostos e corpos. Nossos valores seriam diferentes, como “não é o tamanho do pé que importa, mas sim o equilíbrio que ele proporciona”. E assim por diante.
Criaturas que rastejam têm um ponto de vista diferente sobre as calçadas do que nós, seres com patas. Para elas, a calçada serve como alicerce do corpo. Deve ser fantástico rastejar. Quis ser réptil por um breve momento. Mas e a experiência do chiclete grudado no concreto, e da poeira que foi por dias molhada e seca, grudada ao chão, e das pegadas invisíveis, das bactérias, do papelzinho rasgado, e do aleijado que pede dinheiro sentado no skate? Que pontos de vista teriam todos eles sobre as calçadas?
Pois tentando imaginar uma realidade diferente, experimentei deitar-me sobre o chão do boxe, enquanto deixava a água ligada. Aproveitei meu banho como há anos não fazia. Parei de me preocupar com o tempo, a água corrente e o gás ligado para deixar a água correr pelo meu corpo. Meu boxe é alongado, por isso posso esticar as pernas, e me coloquei com pés para o chuveiro, cabeça para o ralo. Vocês não sabem, mas como o banheiro é lugar de limpeza, é tudo muito limpo. Então, abandonem o leve mal estar, porque os banheiros são lugares positivos.
Com o rosto encostado no chão, observava a água correr. Com o rosto para frente, observava a água escorrer pelo buraco. Curiosidade sobre o ralo: deu vontade de enfiar o dedo, mas fiquei com nojo. Tive muito medo do ralo e de tudo o que está ali que eu não sei. Comparei o ralo ao meu umbigo. O chão do boxe era uma grande barriga com um umbigo bem parecido com o meu, só que enquanto eu procuro expelir coisas do meu umbigo, o ralo estava colocando tudo para dentro. Será que também entram coisas pelo meu umbigo? Emoções, espíritos? Tive medo de tudo o que está no meu umbigo que eu não sei. O medo foi enorme.
Alguém chegou pela porta de casa. Ouvi o barulho, parei de cantar. Fiquei imóvel, com a água correndo. Por vários minutos, fui um corpo suicida, imaginando os cortes no pulso e o sangue escorrendo com a água. Pelo ralo se vai uma parte de mim, tão preciosa quanto qualquer outra. Células do meu corpo se vão para tornar o esgoto um lugar mais sagrado. Veio uma pergunta à minha cabeça... Qual o ponto de vista de um corpo morto sobre uma calçada? E o sangue que nela fica empoçado? E da vela que derrete sob o sol do meio dia? Não tenho as respostas. A água escorre levando meus pensamentos, mas me traz de volta a mim. Que bom que sou um corpo vivo e que posso escolher a posição em que quero estar na vida.

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