quinta-feira, maio 10, 2007

The Dreamland
- Capítulo 1

Eu, a morte

Desde que nasci, eu, a Morte, sou obrigada a ter uma vida normal e a enfrentar as dificuldades que qualquer ser-vivo encontra. Fui à escola desde criança, disfarçando o disparate de um espírito antigo num corpo novo e disfuncional, e nunca gostei de ocasiões sociais, principalmente das primárias.
Tive que aprender a aprender todos os aprendizados mortais: andar, falar, escrever e me relacionar. Esta última é a que considero a mais complexa, já que eu, Morte, sempre tive que lidar com as pessoas na proporção de “um para um”. Dessas relações sempre dei conta, mas não sei lidar com grupos. Saber o que responder aos resmungos das pessoas nas filas de banco, acho que viverei sem saber.
Hoje estou na faculdade. Hoje é o décimo nono dia, do quarto mês do sétimo ano do segundo milênio depois de Cristo, e eu estou sentada na segunda coluna, quinta fileira que vai da porta para a janela da sala, da esquerda para a direita para quem entra, no primeiro andar de uma faculdade católica. Nesta faculdade há, em cima de cada quadro-negro, um crucifixo com um Cristo esquálido, no qual ninguém repara a não ser quando a aula nos toma do mais sincero e puro tédio. Por acaso hoje a professora de Literatura resolveu falar da morte. Ela está tentando explicar o quanto é importante para a vida das pessoas a consciência de mim. Mas eu estou aqui, sentadinha, calada, observadora da situação mais estranha que já passei em vida. Aqui, bem na sala dela. Sem que ninguém nem cogite esta possibilidade.
Vi poucos acidentes, tento escapar do desagrado de ver os corpos abertos de pessoas e animais agourando, esperando por mim. Agora que tenho um corpo como o deles, sei o quanto dói perdê-lo. Anos a fio cuidando para entendê-lo, e depois, de repente, tudo se perde. Mas o meu papel se dá depois disso, no campo etéreo, aonde carne não entra. Aliás, não sei como podem as pessoas comerem a mesma substância da qual são constituídas e ainda fazerem disso uma ocasião a ser celebrada socialmente. Animalescos. Primitivos. Muitos ciclos ainda precisam passar. Maldito juízo de valores que cabe a mim. Sempre questionando. Quando eu sorrio não sorrio com eles; sorrio deles. Esqueço-me sempre da situação na qual me encontro: entre eles. Por isso, muitas vezes, passo por eles como um fantasma, mas me assusto quando me notam. Quando me notam, poucos detectam que existe algo peculiar por de trás da máscara de gente. Poucas pessoas olham nos meus olhos e as pessoas que olham, que conversam comigo, não entendem, não conseguem formar conceitos sobre mim, pois sou extremamente contraditória. Opostos supremos!
Continua lá, aquele Cristo esquálido, dependurado na sala. A mim lembra algo desagradável, mas eles parecem não se importar. Tudo é muito banal neste mundo, para esta geração planetária. Ainda me lembro de quando ele veio até mim... Saber de onde ele vem, saber para onde foi e ver no quê ele foi transformado aqui neste lugar é um pouco triste. Além do que, as pessoas não têm noção das suas feições, o que pode ser muito engraçado. Estas em nada se assemelham à imagem que adoram. No entanto, nada é aleatório. Tudo tem um porque, apenas as pessoas não se perguntam qual é. Elas acatam tudo o que dizem. Concílios se reúnem e decidem séculos de existência e elas não percebem nada. Nada de estranho. É como se a humanidade vivesse num sono profundo. Muita claridade cega os olhos deles e, hoje, os meus também.
Na minha forma original não tenho olhos. Eu sou toda presente e toda onisciente, como se houvesse olhos em cada núcleo de célula da minha pele, se eu tivesse pele. E eu reúno todas as coisas em mim. Sou um pouco parecida com o Caos de Todas as Possibilidades, só que dele as coisas saem e, para mim, as coisas voltam. Poucos vêm me conhecer por vontade própria e sem desespero. Eu exerço uma atração incrível e inexplicável, mas também um medo contínuo e absurdo. Sou quase como o segundo Deus para os monoteístas; quando não agem pensando no seu Deus, agem pensando no medo de mim. As coisas são em verdade bem mais simples do que aparentam. Morrer é, na maioria das vezes, como um sonho incontrolável, desses que sonhamos acordados. Tipo da fantasia que temos e vemos as coisas acontecendo sem que de fato aconteçam. Por isso é tão importante sonhar. É com esse músculo que se exercita para a morte. Podemos dizer que sonhar é como um treino para morrer. Completamente necessário à vida.
Ainda não disse como é quando me encontro comigo mesma. Essa explicação fica para outro dia. Estou usando este corpo ao máximo; depois descrevo a incrível sensação da “petite mort” dos franceses, quando volto à desorganização por alguns segundos. Orgasmos. Descanso. A morte é tão natural. -E eu sou mais fácil e mais dócil do que se imagina- mas este não é um convite a mim. Cada um no seu tempo. A entrega pode ser num suspiro ou pode ser arrancada. Só depende da pessoa.
Existem pessoas que lidam muito bem com processos de morte, elas são chamadas Plutonianas, mas nem todo Plutoniano está aberto a me receber. Muitos trancam a chave que receberam para os meus segredos a sete chaves. Também as pessoas que já passaram por Daath sabem como lidar com suas pequenas mortes, conhecem os processos de vida, morte e renascimento. Mas estes são passos diferentes que os dados pela maioria. Existem mais caminhos até mim do que se imagina. A maior parte das pessoas acha que estar vivo é o contrário de se estar morto. Para você estar vivo, é preciso estar morto em algum nível e para estar morto, é preciso estar muito vivo. Então são coisas absolutamente presentes a todo tempo. É como não conseguir enxergar o topo da sua própria cabeça. Você não se dá conta dele, mas está lá.

3 comentários:

Natacha disse...

Morreu feliz também?

Ficou com a sensação?

Vivo como se tivesse morrido...

Anônimo disse...

Tem gente que se acha, não é? Até com a morte vc quer se comparar... Não me identifico não por medo ou coisa assim, pois vc me conhece, e eu nunca magoaria vc dizendo o q realmente acho, mas aqui vai uma sugestão: seja mais natural, descomplique, não se preocupe tanto em chamar a atenção dos outros, mesmo q negue isso de forma veemente. A sua pseudo-sabedoria apenas esconde uma grande infantilidade e despreparo emocional. PS: por que não presta mais atenção ao que está ecrito no quadro-negro do q no q está acima dele, nas aulas de Literatura na PUC? Vc não é isso tudo, baby! Mais humildade cairia bem, srª não-quero-ser-notada-mas-por-favor-me-notem. Peace!

Unknown disse...

que comentário estranho esse anônimo...dá uma sensação de que quem "não quer ser notada mas por favor a notem" é ela... aliás, parece bem ela mesmo, coisas de um ser fêmea que fica ocupada com o brilho alheio, já que sua estrela anda fraquinha e morrendo, se é que já não morreu... vai ver é isso, medo da morte.
Mas, entrei aqui pra comentar outra coisa, como achei bacana seus textos, Alê... de uma sacação fina e inteligente, com uma escrita gostosa e envolvente, que não diz à toa, tanto que provoca de todo modo, né... vou passar por aqui mais vezes... curti te conhecer aqui. :)
bjo, minha querida amiga.